sexta-feira, 26 de setembro de 2008

vida pacata

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Levantou-se às sete da manhã sem a ajuda do despertador. Nunca precisara dele.
Agora até se levantava mais tarde, antigamente levantava-se às cinco ou mais cedo ainda.
Eram outros tempos, deixara essa vida. Vida de escravidão. Para quê? Sim, era rico, mas para quê?
Viviam bem, tinham duas empregadas, uma para tratar da casa, que era enorme, e outra, três vezes por semana, para os jardins e as hortas. Podiam fazer férias todos os meses, podiam até fazer outro tipo de vida que nunca gastariam todo o dinheiro que tinham no banco.
Nunca viajara. As férias eram entre as termas de Monte Real e as do Gerês. A mulher é que decidia.
Dependia da saúde. Normalmente iam para o Gerês. Era agradável, faziam-se conhecimentos de uns anos para os outros. A mulher é que não era lá muito sociável. Achava até desnecessário o riso em excesso, a diversão...Não era nada parecida com a irmã que tinha ido morar para o litoral quando casou. Podiam ser pobres mas eram mais alegres.
A vida de feirante gastou-lhe o corpo e a alma. Não que ele não gostasse, aliás, já nem saberia viver de outro modo. Agora que deixara o negócio para os filhos, já nem sabia que voltas havia de dar durante o dia.
Ia até ao pomar. Verificava se as macieiras tinham bicho, dava um jeito às videiras e apanhava uma ou outra fruta já madura.


Antigamente dava a fruta aos empregados que faziam as feiras com ele, agora ninguém queria nada daquilo, todos davam preferência à normalizada/encerada e de tamanho um pouco obeso.
Não descurava também os pombos, dando sempre especial atenção aos mais jovens – os borrachos – pois eram mais sensíveis a doenças.


O cheiro a café acabado de fazer empurrou-o para dentro de casa. A mesa já ficava posta de véspera para o pequeno-almoço. Sempre fora assim. Tudo organizado.
A mulher olhou-o por cima dos óculos e disse: “Já te chamei 2 vezes, não ouviste?”. Que não, que não tinha ouvido.
Tomaram os dois o pequeno-almoço. Ele café com leite e pão com manteiga. Para ela era sempre o chá de hipericão, que trazia do Gerês, acompanhado com torradas.

Quando estava bom tempo ia até ao adro da igreja falar com os amigos. A vontade dele era pegar no carro e ir até à Figueira ou até Espinho, mas a mulher nunca queria. Dizia que ficava dispendiosa a viagem.

Para ela era quase um sacrilégio permitirem-se a esses gozos.


Gostava de ter conhecido outros sítios, mas foi atraiçoado pela doença.

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