domingo, 24 de agosto de 2008

resonare

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Colocou o despertador para as seis da manhã. Mais uma vez tinha de ir fazer as análises de controlo de sangue por causa daquela coisa da coagulação ou lá o que era. Queria ser a primeira, pois tinha as galinhas para cuidar.
Entrou no quarto. O marido já dormia a sono solto, talvez a pinga do jantar lhe tivesse dado aquele quebranto. Ultimamente só costumavam jantar sopa, pão e fruta, tinham deixado de beber à noite a conselho do médico, ele por causa das tensões e ela pela coisa da coagulação ou lá o que era. O médico era um palerma, essa era a verdade. Ela continuava a beber às escondidas e estava fina. Manias dos doutores.
Por vezes pensava se não andaria a beber em demasia, tal a rapidez com que o vinho se esgotava.
Queria adormecer cedo e não conseguia. Aquele maldito roncar. Era sempre assim. Quando ele bebia ainda era pior. Parecia uma trovoada contínua. Uma vez até lhe espetou com a agulha de croché, mas conseguiu apenas uns minutos de silêncio.
Estava fartinha dele. Raio do homem, vinte anos mais velho e tinha mais genica do que ela. Bem que lhe podia dar alguma e ir de vez, como aconteceu com o Zé da padaria – agora era ver a viúva toda airosa, diga-se até um pouco alegre demais e o Luis Peixeiro não arredava pé lá da porta. Uma pouca vergonha, isso sim.
Puxou a roupa toda para si, deixando-o a descoberto e adormeceu.

Era a segunda. Levantara-se tão cedo para ser a segunda. Raios partam àquela mulher que chegava sempre antes dela. Chegava mais cedo porque ia de carro, que ela via-a muito bem a estacionar. Que tinha que ir trabalhar para o Porto, dizia em conversa com os que iam chegando. Trabalhar!!! Ah, mas com aquelas unhas pintadas sabia lá o que era trabalho. Hum, também ia fazer análises por causa daquela coisa da coagulação ou lá o que era.

De regresso a casa, em pleno Agosto, chovia. Já nada era como antigamente.

Ao longe avistou a carrinha do INEM.
- Ai, ele vai fazer-me tanta faltinha – dizia a quem lhe dava as condolências.
Ainda bem que eram sócios da funerária, ficava mais leve a cerimónia.
O filho mais velho disse-lhe que no óbito constava cirrose do fígado.

Foi a primeira noite tranquila em 50 anos de casada.

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